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Dona Laura não disse

Dona Laura não disse

 

A Dona Laura comove-se pela ruína, pela erva daninha, pelo abandono, pelo vazio, pelo ar cheio de nada e de memória, pelo ar cheio de tudo e de ausência.

 
 

 

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A Dona Laura anda a pé para sentir a ruína, assim lembrando o Sô Eugénio que tinha a barbearia, outrora cinema da família Sousa, agora desventrado; agora esqueleto de betão meio sumido, meio colorido pelo musgo das chuvas continuadas.

A Dona Laura sustém o caminhar se quiser reparar na erva daninha a romper pelo meio do alcatrão. Aí, ela se deixa fascinar por aquele fenómeno da vida a vencer sempre por entre os obstáculos mais resistentes. E a Dona Laura sai da pose de senhora colocada para se ajoelhar no chão. E afaga as ervas daninhas que encontra no caminho abandonado, esse caminho cheio de gretas pela ausência de passos que as permitiram vingar. A Dona Laura afaga as ervas daninhas como se fossem rosas macias, ah que perfume agreste de lutadoras!

 

A Dona Laura não deixou de passar no caminho abandonado, não deixou de espreitar o prédio devoluto cuja frecha na janela da porta principal deixa relembrar os armários da vizinha, carcomidos pela humidade, invadidos pelos casulos de borboletas e outras espécies livres que usam e abusam do espaço intocado por humanos há décadas. Ah o abandono, Dona Laura comove-se com ele!

A Dona Laura olha para o vazio e relembra o que conheceu, imaginando o que nunca viu; na sua frente tem ruínas cheias de histórias. Umas, suas também, outras de outras Lauras emocionadas com o vazio.

 

A Dona Laura comove-se com essa capacidade do ser humano. A capacidade de abandonar sem coragem para ruir e construir, sem coragem para cuidar, sem forças para rever, sem energia para curar. A Dona Laura comove-se com um comportamento que se repete nessas ruínas por aí. Seja pela porta trancada, seja numa porta queimada, seja ruminando na porta carcomida, seja soprando pela janela partida, seja na janela aberta, qualquer que seja a ruína que a comova, há sempre uma cortina que ficou. De renda, de seda, com pó, sem pó, de pano, de plástico, às risquinhas, às bolinhas, aos enfeites, nos varões, nas presilhas, ficam sempre, elas, as cortinas.
Que pudor é esse, o do abandono?

A cortina que omite ou que protege desvendando?
Que resguarda um lençol pendurado no vazio?
Dona Laura não disse.

 
texto de Heitor Nunes

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