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Vai uma pipoca?

Este mundo que nos rodeia é um ecrã fascinante. O verdejante da paisagem que nos livra da rotina e que visitamos nas horas de maior cansaço e de saudade-mor preenche-nos a alma e o pulmão.

 

Enfrentamos o regresso na estrada como uma formiga submissa ao ter de ser, ter de comparecer, ter de fazer. Facilmente esquecemos os odores do rum-rum rotineiro, dos ruídos citadinos e da fila no supermercado, como ovelhas amestradas, como pinguins excitados, disse um moço um dia destes no vagor proxémico de uma carruagem.

 
 

 

 
 

Observa-se tudo como um filme vivo, por vezes cheio de falta de VIDA. Deixo cair um pacote de arroz no chão encerado da grande plataforma industrial. Vergonha pública, carrinhos de compras atropelando-se no deslize em grãos de arroz. Baixo-me para colmatar os danos e de relance revejo pacotes de pequenos grãos de milho.

No meio do caos dos grãos de arroz, relembro o fascínio dos bagos de milho a estourar na panela lá de casa, aquela, a que nos marca na infância. Aroma que conforta a alma, mesmo que a sonhar acordado, ali no meio de um pavimento cheio de arroz espalhado por todo o lado. Efeito de um reflexo inconsciente, peguei num desses pacotes. Já tinha chegado um funcionário solícito, já se ouviam novas conversas nos corredores.

 

A rotina prosseguia no esforço de a negar. Os grãos de arroz eram passado. Obrigo-me a não esquecer um gelado. A uma conversa com um amigo de longa data. A uma visita ao jardim mais escondido. A um livro com o pardal do ramo mais próximo. Obrigo-me a ler apenas de relance que o novo presidente norte-americano (minúsculas deliberadas) perdeu um dos seus representantes oficiais, relembro que há crianças que nascem sem nunca terem tido o projeto de existência de infância, a guerra é o seu berço, a escolha radical entre nós e vós é a roca dos seus primeiros blás-blás. Obrigo-me a não esquecer o livro que mantenho no colo, rodeado deste ecrã magnífico, mas não é filme, não é ficção.

Aquelas crianças estão mesmo sentadas no passeio fascinadas com os guitarristas de rua. Que hipnotismo mais singelo. Volto às páginas do mundo. Mais um rapto, mais uma moda virtual que amanhã se esquece. Superficialidade na expressão de liberdades. Um poder, este, o da liberdade. A criança em frente queixa-se do peixe dado na escola, tem liberdade para o dizer, é livre para escolher. Recolho o livro e prossigo.

 

As buzinas continuam lá, os mesmos volantes destemidos, cheios de impropérios e impaciência. Ecrã insuportável, este. Não é difícil imaginá-los em câmara lenta e sem som, ecrã divertido, este. Tentem. As compras começam a pesar-me, está calor e avisto uma igreja. De repente, obrigo-me a apetecer-me silêncio. Entro, escuto-o. Saio e descubro que dentro da mesma se esconde uma loja de roupa feminina; reflito- abertura a novos mundos ou hipocrisia ideológica? Perco-me no ecrã da surpresa, deste filme magnífico que se me apresenta.

Um semáforo avariado, um elétrico bloqueado, uma rodagem de um filme, estudantes nervosos e felizes pela adrenalina do episódio e da claquete. “CORTA!” É o real na ficção, é a ficção no real. A rua apetece, quase que esqueci o que me quis obrigar esquecer. Cheguei, rodei a chave da porta antiga, subi no elevador, alguém deixou um poema colado às teclas do monta-cargas. Ecrã surpreendente, este. Abro a porta e descalço os ténis. Alívio, sentir este chão fresco. Despejo o saco, tinha-me esquecido de que tinha trazido o milho. Na minha mente, a saudade do pop-pop-pop. (Ou será pum-pum-pum?) Retomo uma panela antiga, reutilizo o fogão a gás, relembro a receita. Pop. Pum. Pop. Olho pela janela. Começou a chover, o arco-íris pára os transeuntes em contemplação. Pum. Pop. Pop. Preparo o mel e a canela. Pop. Pop. PUM. Continuam parados. Continuo siderado com o filme real a que assisto. Pop. Pop.

 

– Vai uma pipoca?

 

Texto de Heitor Nunes.

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