Quantcast
 
 

Um guelas na esquina – Abandonam-nos tão facilmente como nós os abandonamos nessa prateleira cheia de pó por limpar chamada vida

Há qualquer coisa de abandono das nossas idealizações durante a orfandade da vida. Temos sonhos de criança que guardamos como colecionadores de cromos.

 

Vão ali atarrachados ao peito, desfeitos num chuto de bola, num botão de consola de jogos premida pela primeira vez, num telefone cujo fio encarolávamos nos dedos infantis, sim, desses aparelhos outrora fixos e que parecem agora ficção.

 
 

Vão então esses sonhos coladinhos nos gestos do dia a dia. Assim nos perseguem na vontade de os concretizar, eventualmente acabam por se tornar uma fixação apenas, gasta-se a energia em colar, e recolar esse sonho-cromo na insistência de o manter, gasta-se a energia que o poderia ajudar a concretizar.

 

 
 

 

 

Temos sonhos de criança que veneramos como um brinquedo novo, a tal novidade que nos tira o sono. São sonhos daqueles que nos fazem pular, rir, chorar de emoção, e, agarradinhos ao tal brinquedo novo, dormimos toda a noite. Sim, como se a nossa vida desse abraço dependesse, e, no entanto, no dia seguinte não deixamos de colocar o tal brinquedo na prateleira, a ganhar pó que se limpa semanalmente, deixando o brinquedo tornar-se parte da mobília, perdendo a novidade, e com ele fugindo o entusiasmo. Faz parte da paisagem como um arbusto no caminho de todos os dias. Há assim esses sonhos de criança que, por si só, deixam de ser sonhos concretizáveis, foram só sonhos que passaram.

Abandonam-nos tão facilmente como nós os abandonamos nessa prateleira cheia de pó por limpar chamada vida.

 

Até que um dia se muda de casa, se empacotam os sonhos velhos acordando-os de poeira e lembranças. E, como uma partícula de pó invisível que nos faz reagir numa interjeição do corpo, assim, imperceptivelmente volta-se a sonhar.

Até que um dia se chega à rua da infância, já não sendo infante, e se vê um pai agachado na terra a brincar com os filhos.
Caçam formigas? Não.

 

Brincam aos carrinhos? Não.

Cheguei à “minha” rua e vi um pai agachado no chão com a filha e o filho a seguirem-lhe os traços de dedos na terra.
Aprendiam a jogar ao berlinde.

Voltei a sonhar e lembrei-me: também eu joguei ao guelas.

Naquela noite não houve pó na prateleira.

TEXTO DE HEITOR NUNES

Comentários

comentários

Você pode gostar...