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Uma Pedra no Sapato


Deixei-te a beber uma limonada na esplanada da esquina e ainda não tinha chegado ao carro quando o telemóvel tocou.
O meu chão caiu num oceano de vazio e de sentido. Só me lembro de ver a multidão ao meu redor quando abri os olhos depois do desmaio. Senti-me como um minúsculo pintaínho frágil e idiotamente infantil. Tu, ali, a partir para outra dimensão e eu a ser socorrido por que não tive a estrutura física e mental para aceitar a realidade. Podia lá ser.
Ninguém prevê a morte, ninguém prevê a chuva, ninguém prevê uma pedra no sapato. Sabemos, no entanto, que somos finitos, que as estações sempre voltam e que se pisamos as pedras, facilmente lhes dançamos a possibilidade de as trazermos connosco.

 

 

 
 


Foram meses longos na espera que a negação acabasse. Não havia negação. Podia lá ser. Se eu te sentia nas palavras, nos odores, nos gestos por detrás de mim, na pele, podia lá ser. Se ouvia a tua voz por detrás da cortina do chuveiro. Se te sentia os passos no percurso das nossas caminhadas. As tuas mãos nos meus atacadores. A tua apaziguadora voz nas minhas dúvidas. Andei adormecido por tempo indefinido. Sem dor, sem prazer, sem ironia, sem riso, sem odores, sem sabores. A rotina correu sem memória, apenas aconteceu.

Mesmo sem o teu despertador tocar primeiro. Não estarias ali? Podia lá ser. As portas abriam, as pessoas falavam, os elevadores funcionavam, a minha presença parecia ser apenas isso: uma presença. Tudo o resto corria à minha volta, testemunhando esta presença, ou o que raio fosse isto, eu, esta forma, disforme de existência. Podia lá ser eu.
Foi então que tropecei no atacador deslaçado. E não estavas lá para nos rirmos juntos. Levantei-me, consertei o desleixo e continuei a caminhar com algum desconforto. Nos ouvidos um tinido sinistro de pânico. Não estavas ao meu lado. Podia lá ser. Cada vez dóia mais caminhar.  Uma ausência a fazer denotar a dor no andar. Ou a dor no andar a lembrar a ausência. Podia lá ser.
Senti-me como uma corda de guitarra prestes a quebrar, mal timbrada e em mãos insensíveis, causando um vibrato de dor nas notas erradas. Parei, descalcei-me, tinha uma pedra no sapato. Aquela dor era real, afinal. Consegui vê-la, inacreditavelmente minúscula, quase invisível. Impressionante como um homem se quebra com algo tão insignificante, quase invisível a olho nú. Uma minúscula pedra! Uma pedra no sapato derrubará um homem? Pode lá ser. Uma ventania levantou mais poeira, mais pó, mais pedrinhas. Atingiram-me os olhos e caí. Senti dor. Sentia dor física? Senti o odor fresco e húmido do vento. Então reflecti. Pela primeira vez em tanto tempo, reflecti: Ainda estava vivo.

 
 

 

texto de Heitor Nunes

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