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Os cacos – Também nós estamos aos cacos

A senhora Jacinta e o senhor Norberto viviam no casebre amarelo desde que se conheciam como casal. Tudo fora discreto pela calada dos afetos e papéis que não sabiam assinar com mão firme. O Padre tinha sido a testemunha e o primo do senhor Norberto ensinara-os a rabiscar os nomes, assim num desenho mais belo que uma simples cruz no fundo do papel.

 


Que alegria fora ver o nome de Jacinta rabiscado, Norberto até deixava o olho brilhar! Com algum pudor, é certo, mas foram assim para o casebre abandonado da aldeia. As pessoas ajudaram a tapar os buracos como souberam: barro dali, massa dacolá, e assim começou uma vida longa. Coberta de cal e pintada de amarelo.

 
 


Quando o Sol refletia no casebre, toda a aldeia brilhava. Dona Jacinta cantava por feitio e assim a casa amarela sorria-se por inteiro também.


Uns primos afastados a viver na cidade grande tinham enviado como prenda de matrimónio um conjunto de loiça: coisa ali nunca vista, pratos de sopa, pratos de carne, pratos de peixe, pratos de sobremesa, pratos de chávenas de chá, pires
diz-se assim, Jacinta?, pratos de pão, pratos. A vida encarregou-se de os usar até ao fim, até às rachas, até ao estado bicado, até aos cacos.
A vida foi-se bicando também e o casal envelhecendo com ela.

 
 


A senhora Jacinta tinha pena de deitar os cacos fora quando os pratos escureciam do fumo, quando quebravam no meio, quando rachavam a linha dourada, tinha pena de não os poder substituir com mais fôlego, tinha pena de deitar uma consideração ao lixo.


O senhor Norberto resmungava a sua dignidade ao não se dignar comer de um prato bicado.

 


Os cacos facilmente causavam resmungos de velhice quando os velhotes Jacinta e Norberto a ela chegaram. Não se tratava de zangas nem de discussões, eram resmungos em cacos.


A senhora Jacinta reparara que a coleção diminuía a olhos vistos, tinham sido duros em todas aquelas décadas, pensando bem afinal, mas apenas restava um prato. E este prato restante bicou-se.

 


Num gesto rápido, retirou o lenço da mão escondido no saiote. Era um porta moedas flexível. Uma moeda daqui, uma moeda dali e assim os trocos coletados davam para renovar a loiça,
um prato novo para cada um, ora essa, a morrer que morra sem cacos!


Dona Jacinta tomou coragem e pegou no prato bicado. Alguns dos cacos tinham servido para dar de pensar às galinhas, outros para tapar buracos nas paredes de pedra, mas aquele já não tinha serventia, era uma teia de riscos sem uso e validade, pensou.

 


Pegou no prato, abraçou-o ao peito e recordou o dia em que o recebeu de presente. Os seus olhos brilharam ao reconstruir de memória a cerimónia modesta, mas a SUA cerimónia. O seu sorriso desdentado iluminou-lhe o rosto ao lembrar-se da entreajuda dos vizinhos a comporem o casebre.
Ah que dia mais belo, o dia em que nasceu a casa amarela.


O Senhor Norberto apareceu do nada e interpelou a esposa. Tinha estado a observá-la da horta.


Pegou-lhe num dos braços, pegou no prato, ou no restante dele, convidou-a a entrar no casebre, pousou o caco sobre a mesa e desfez-se em lágrimas.
– Anda cá Jacinta, hoje como nele! Deixa lá, também nós estamos aos cacos.


E, felizes, puros, sorriram desdentados.

TEXTO DE HEITOR NUNES

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